|||

#22: Um eterno e contínuo coming of age

Este texto foi publicado originalmente na minha newsletter no Substack, que mantive ativa durante seis meses em 2022.

Olá e feliz 2023! Espero que o sumiço das duas últimas semanas não tenha feito ficar tarde demais para desejar isso. Tem bastante gente nova que chegou porque alguns dos meus textos foram indicados por aí na substackfera, então acho que para muitos minha ausência não deve ter sido sentida. Para os que notaram e não me seguem no Instagram (já que por motivos ainda misteriosos eu fiz muita questão de avisar), estive em Buenos Aires na primeira semana do ano e até tentei escrever algo enquanto estive lá, mas não consegui. Na verdade, tenho tentado escrever qualquer coisa há algum tempo, mas está sendo um esforço enorme encontrar e tirar algo daqui de dentro.

Eu semana passada em Buenos Aires tentando não pensar sobre ter que pensar.

Ouvindo um podcast bem específico enquanto dobrava uma montanha de roupas que se acumularam na passagem de ano, tive a epifania de que talvez não estivesse conseguindo porque o que eu queria mesmo era escrever sobre o processo de decidir ou não congelar meus óvulos. Na newsletter 19, em que listei alguns dos temas que pensei em tratar no ano passado, citei brevemente essa questão sugerindo que não escreveria sobre isso:

  1. Congelar óvulos

Sim, estou contemplando essa ideia, apesar de nunca ter cogitado ter filhos, graças ao meu quadro de endometriose. Automaticamente, quando minha ginecologista disse que eu deveria pesquisar sobre o assunto, imaginei que ele poderia virar um tema para a newsletter. Mas, quando saí do consultório do médico especializado em fertilidade, só consegui dar risada de mim mesma porque senti que parecia que eu só tinha ido lá pra poder escrever sobre a experiência. Existem muitas crônicas que descrevem o processo que é bem interessante mesmo (algumas são ótimas, outras não), mas só de imaginar que enquanto a pessoa estava vivendo aquilo ela já estava arquitetando seu relato meu corpo se espreme de vergonha.

Essa edição nem faz tanto tempo assim, pouco mais de um mês, e agora estou com vergonha de mim mesma porque mudei de ideia completamente — ter uma newsletter e poder acessar nossos pensamentos anteriores é uma dádiva e uma maldição. Os motivos pelos quais eu não queria escrever sobre o assunto eram todos relacionados ao outro, mas mais especificamente não quero que pareça que não tenho mais nada de interessante para dizer e tive que apelar a algo extremamente pessoal e anedótico”. Agora, enxergo com mais clareza que essa esquiva disfarçada de crítica era ela mesma uma prova de que escrever sobre uma experiência íntima desse tipo não é nada, nada fácil.

Nunca consegui me relacionar muito com pessoas que gostam de escrever e que dizem que o fazem porque precisam” ou porque por meio da escrita organizam melhor seus pensamentos. Minha relação com a prática sempre foi mais de diversão ou, tenho que admitir, a vontade de ser publicada/lida. Pela primeira vez, no entanto, sinto que escrever pode me ajudar já que desde que minha ginecologista me aconselhou fortemente” a buscar um clínica especializada em fertilidade, tenho agido apenas no automático, fingindo que nada está acontecendo, postergando cada decisão até o limite, inclusive, e principalmente, a de pensar no porquê de eu não ter coragem de encarar essa notícia de frente. Poderia tentar escrever só para mim, mas a fim de entregar um conteúdo mais rico, escrever aqui com certeza fará com que eu me force a cavar um pouco mais fundo nos meus sentimentos e acho que é disso que estou mesmo precisando no momento.

Não querer ter filhos é uma máxima que me acompanha há anos. Começou quando eu era pré-adolescente, provavelmente comigo querendo parecer diferente de garotas que diziam ter isso como um sonho, uma coisa meio boba I’m not like other girls”. Mas cresci e nunca parei de repeti-la mecanicamente até porque ela foi ganhando novas e justas justificativas. Como quando enxerguei o quanto as mulheres com filhos são estigmatizadas, pressionadas, reduzidas e sobrecarregadas, ou quando percebi a demanda financeira e a necessária reorganização da minha saúde e da minha cabeça para criar um ser humano, ou quando concluí que o mundo estava acabando, então a não ser que eu optasse pela adoção para ser mãe, eu não deveria querer colocar uma nova pessoa nele (inclusive porque, para isso, eu precisaria ultrapassar meu pavor de agulhas, sangue e hospitais). Tudo isso embalado por um medo enorme de uma gravidez adolescente que continua me assombrando aos 29 anos.

A única vez que me recordo dessa certeza ter sido balançada foi quando assisti, uns dez anos atrás, ao episódio de How I met your mother em que a Robin descobre que não pode ter filhos. Apesar dela ter passado a série inteira dizendo que não queria ter, ela ficou devastada quando recebeu o diagnóstico. A frase uma coisa é não querer algo, outra é te dizerem que você não pode ter” ficou ressoando na minha cabeça por muito tempo. Eu me identificava tanto com a personagem, por ela ser jornalista e meio chata com relacionamentos, que comecei a achar que, igualmente, eu tampouco podia ter filhos e brincava mentalmente que essa impossibilidade seria uma coisa boa pra mim, útil até. Na época, não entendi o motivo dela ter ficado tão arrasada com a notícia, mas me lembro de lá no fundo bater um leve medo de aquilo acontecer comigo também.

Apesar disso, continuei repetindo o meu discurso sempre que me perguntavam. Talvez porque, dentro de mim, eu tivesse algum tipo de certeza de que não seria o caso por aqui. De que apesar da minha constante manifestação contra, não me seria tirada a possibilidade de mudar de ideia. Minha arrogância adolescente acreditava que minha dedicação e disciplina seriam capazes de consertar qualquer coisa.

Quase uma década depois, um exame me dá o diagnóstico de endometriose e a necessidade de uma cirurgia (não urgente, mas fico sabendo que o ideal seria realizá-la no começo de 2023). Nem havia digerido a ideia de ter que encarar anestesia, agulhas e cortes quando a médica emendou a informação da minha baixa reserva ovariana e que a cirurgia a diminuiria ainda mais. Ela fez de tudo para não ser impositiva quando sugeriu o congelamento de óvulos, mas entendi como um mandato. Soltei minha frase pronta de que não tinha problema porque eu não queria ter filhos e ela disse algo do tipo as pessoas pagam por seguros de carro, por que não pagar para assegurar que você terá a possibilidade de engravidar?”. Essa comparação me fez esboçar, mas também me incomodou. Não sei, é só uma comparação, tá tudo bem, todo mundo sabe que bebês são mais relevantes do que carros, mas tudo pareceu meio… sem vida?

Marquei uma consulta na clínica de fertilidade sem expectativas, como se estivesse cumprindo só mais uma tarefa que me haviam dado. Levei meu namorado porque queria que mais alguém ouvisse o que seria dito caso minha atenção desligasse no meio da consulta (acontece com frequência). Não ajudou na experiência que a clínica fosse decorada como um ambiente de The Good Place, com sofás nuvem e livros de bebês em cima das mesas, exatamente como imaginei que seria graças a descrições precisas das crônicas que li sobre o assunto e de filmes que já vi abordarem esses lugares. As pessoas não se importam mesmo em ser clichê, pensei, antes mesmo de ouvir a piada machista que o médico fez quando foi se despedir de nós na sala de ultrassom. Olhando para o meu namorado, ele disparou: então tá bom, esse é o processo do congelamento, e daqui alguns anos, embriões corinthianos, certo?”. Quis pular da cadeira ginecológica enquanto repetia para mim mesma eu não acredito no que estou vivendo, estou fazendo um ultrassom, meu namorado está aqui vendo meus ovários, e estou ouvindo um médico fazer uma piada de futebol sendo direcionada diretamente a ele. Isso é um filme???? Eu fui muito ingênua de esperar algo diferente?”.

Mais exames foram pedidos e eu os fiz pelo mesmo motivo que fui até lá, para cumprir uma tarefa. Aprecio o enorme esforço que ambos os profissionais dispuseram para não colocar peso na minha decisão de congelar ou não os óvulos, mas acho que a tática, unida à minha personalidade, fez com que o processo ficasse apenas insípido. Eu, que me questionei com raiva por que estava sendo obrigada a falar sobre ter filhos sem ter decidido isso por vontade própria entrei na onda e evitei ao máximo pensar sobre o assunto, como se ele pudesse sumir, como se continuar ignorando e levando tudo do modo mais sem emoção possível pudesse fazê-lo virar mesmo algo sem motivo para preocupação. Conversando com a minha psicóloga e ouvindo o podcast que citei acima, porém, percebi que todo esse processo queria ocupar (já estava ocupando) um espaço muito maior na minha cabeça.

No fim do ano passado, cogitei sentar com um papel na mesa, traçar uma linha para dividi-lo em dois e escrever em cada metade prós e contras para tomar minha decisão. É claro que, toda vez que tentei, algo mais interessante apareceu para fazer, como limpar meu armário, rolar o feed do Instagram ou observar o movimento da rua pela janela.

Meu armário já está limpo, o feed do Instagram só me perturba e não tem nada acontecendo na rua. É hora de fazer essa lista.

Meus principais motivos para não querer congelar óvulos são eu ter descoberto alguns outros problemas de saúde, nada aparentemente grave, mas que para serem solucionados exigem certo esforço, muitas pílulas que eu odeio tomar e mudanças de hábitos. Ou seja, quando minha atenção é chamada para que eu olhe para o meu corpo, de repente tenho que dividi-la com algo que nem existe agora, um filho. Depois, tem a parte de encarar um procedimento caro, desgastante, que envolve agulhas e hormônios, para algo que nem sei se quero. Ou melhor, que eu sempre disse com muita ênfase não querer. Isso me parece muito estranho. Outra coisa é que mesmo sabendo que não precisa ser assim, a imagem de pessoas em clínicas de fertilidade para mim sempre foi de frustração após muito desejo e esperança colocados em se conseguir engravidar (ela foi bastante moldada pela terceira temporada de Master of None e o filme Private Life), algo que passa longe da minha experiência.

No geral, eu fico feliz que essa possibilidade exista hoje (e que estejam surgindo iniciativas para deixá-la acessível), de certa forma ela me parece ter relação com mais liberdade, mas acho que foi muita informação para digerir de uma vez. Ou, como conversei recentemente com uma amiga e precisei voltar aqui para acrescentar, o maior incômodo possa estar vindo do excesso de conteúdo que tem aparecido sobre o tema (um pouco pelo meu algoritmo condicionado, um pouco porque realmente parece que ele está nos rondando cada vez mais), que tem feito com que o congelamento, pelo menos pra mim, soe como mais uma imposição sobre as mulheres camuflada de liberdade, quase como uma responsabilidade em vez de uma opção — e uma que custa bem caro.

Algumas das vitaminas e pomadas que agora habitam minha escrivaninha (eu considero protetor solar remédio pra me lembrar/forçar a passar).

Algumas das vitaminas e pomadas que agora habitam minha escrivaninha (eu considero protetor solar remédio pra me lembrar/forçar a passar).

Por fim, sei que muita gente me enxerga apenas como uma pessoa séria, madura e disciplinada, mas muitas e muitas vezes ainda me sinto como uma adolescente e acho que acabo fazendo questão de agir como uma de vez em quando. Se seguranças ainda pedem meu documento para comprovar que sou maior de idade, se não consigo nem viajar sem torcer meu tornozelo porque não sei escolher um sapato adequado para andar kms (aconteceu em Buenos Aires duas semanas atrás) ou quebrar meu braço caindo da cama (aconteceu em 2019 em Tóquio), como posso estar pensando no tema filhos? Pessoas com quem já conversei sobre o assunto sempre frisam que eu não estou tomando a decisão de ter um filho, mas mantendo aberta a possibilidade de mudar de ideia”. Ok, por mais que eu saiba que congelar óvulos por causa de uma questão médica não seja a mesma coisa de estar tentando ter um filho agora, neste instante, é possível não pensar neles enquanto você está literalmente ouvindo médicos te falarem sobre seus possíveis futuros embriões?

Meu diagnóstico não é de infertilidade (pesquisei, mas não sei se esse é o termo correto hoje em dia, me desculpem se não for), mas fiquei pensando se toda essa dificuldade de decidir, no fim, não está relacionada a uma ideia de falha feminina, tão abordada por esses filmes e séries. Uma voz sentada no meu ombro direito dizendo que eu deveria ter conseguido não ter endometriose e ter preservado o índice esperado para a minha idade da reserva ovariana. Algo entre 1,18 e 9,16 e não 0,41. Seria apenas e mais uma vez uma questão de disciplina? De achar que não tive o suficiente e que agora eu deveria apenas aceitar as consequências e não interferir?

Ou será que, no fundo, eu estou só… triste? Triste porque talvez, lá no fundo, eu esteja recebendo tudo isso como se fosse o veredito de que eu não posso mesmo engravidar naturalmente. Toda a hesitação, todas as voltas, as viradas de olho pela decoração da clínica e pela comparação do seguro de carro. Seria uma questão mais instintiva?

A parte mais irônica é que o universo tenha me colocado para pensar nisso agora, no exato momento em que estou vivendo o luto (desculpe o drama, mas é assim que me sinto) dos meus 20 anos. Em pouco menos de dois meses, terei 30 e continuo sofrendo (menos do que antes) em mudar de dígito. Tudo bem que de fato existe toda a questão da idade para os ovários/óvulos dentro de nós, mas se eu achava que em algum momento teria que passar a pensar sobre eles, e filhos, e gravidez, e gerações, e futuro, e continuidade da vida, e morte, seria por volta dos 35. Eu realmente queria esses cinco anos de prazo…

Enquanto dobrava minhas roupas, comecei a me questionar se ainda penso sobre maternidade da mesma forma que descrevi 14 parágrafos acima. Por mais uma coincidência da vida, o podcast que eu estava ouvindo era o da Haley Nahman, dona da minha newsletter preferida que já citei aqui umas 25 mil vezes (e que já falei que citei 25 mil vezes outras 5 mil vezes), em que ela estava repercutindo seu primeiro texto do ano, sobre tentar engravidar. Não posso mensurar o quão surpresa fiquei quando li a edição porque sempre pensei que ela vivia em torno das mesmas premissas que eu relacionadas a ter filhos, principalmente a do medo de perder um pouco da sua identidade e liberdade ao tomar essa decisão. Ouvir o podcast dela, porém, me deu um estalo, o de que talvez, e ainda que eu continue enxergando a existência e importância dessas questões, elas não sejam mais a única forma que eu enxergo o assunto — e há bastante tempo, na verdade. Desconfio que, no fundo, continuar tão apegada a elas fosse mais sobre uma tentativa de me segurar ao que sobrou das convicções da Nathalia adolescente e aos meus vinte anos, o que tem 100% a ver com este texto que escrevi em setembro, sobre não me sentir pronta para atravessar a fronteira dos 20 porque ainda queria conquistar sei lá o que antes dos 30. Está cada vez mais claro que enxergo o mundo de outra forma hoje, mas tenho pouca coragem de entrar de cabeça nele. Parece que estou presa, ou quero estar presa, em um eterno e contínuo coming of age que nunca chega do outro lado.

Uma coisa engraçada (e deprimente na verdade porque ainda estou na mesma!!) que meu namorado recuperou pra me mostrar depois que leu este texto foram essas mensagens que mandei pra ele quando a gente estava se conhecendo, sobre minha angústia de fazer 26 anos!!

Uma coisa engraçada (e deprimente na verdade porque ainda estou na mesma!!) que meu namorado recuperou pra me mostrar depois que leu este texto foram essas mensagens que mandei pra ele quando a gente estava se conhecendo, sobre minha angústia de fazer 26 anos!!

Talvez eu tenha começado a mudar de ideia quando convivi na ELLE com mulheres incríveis que são mães, como a Susana, a Isis, a Patricia e a Suyane. Ou quando li este ensaio da Bárbara Bom Angelo sobre mães que escrevem. Ou, ainda, quando olhei para as certezas que tinha no passado e percebi que hoje elas são só lembranças engraçadas da impermanência. Todas essas imagens surgiram como uma avalanche ao ouvir esse podcast. Ainda acho que não quero ter filhos, mas com certeza tenho um olhar diferente sobre criar novos seres humanos.

Não posso dizer que estou grata por estar passando por essa experiência agora, por ter sido obrigada” a colocar o tema na já extensa lista de vozes da minha cabeça, mas aceito (ou quero aceitar) que é isso que existe. Eu até posso me culpar — mesmo que os médicos e a minha psicóloga já tenham me dito que cientificamente não faz sentido nenhum pensar de forma tão reativa assim, que por eu ter negligenciado minha saúde por causa do trabalho, desenvolvi endometriose e, como consequência, minha reserva ovariana diminuiu drasticamente —, mas mesmo que fosse possível e verdade, e eu pudesse ter evitado esse diagnóstico, mudado a rota, tantas outras coisas poderiam ter acontecido nesses multiversos. E seriam com essas outras coisas que eu teria que estar lidando. Nesta linha temporal, estou tendo agora a oportunidade de olhar outros lados de uma questão que já estava fechada para mim. Isso não deixa de ser grande.

Queria ter aterrissado neste ano com novas e empolgantes demandas para resolver, mas ele iniciou me pedindo um olhar mais demorado para algo que começou na metade do ano passado. Ou quem sabe esse algo tenha começado há dez anos, no dia em que assisti aquele episódio de himym. Ou quando eu era só uma menina tentando encontrar um espaço mais confortável nas dinâmicas da escola. Seja lá quando foi, provavelmente terei que continuar lidando com ele por um tempinho ainda. Talvez, para sempre.

É isso por hoje. Sei que falar sobre maternidade é delicado. O pouco contato que tive com esse universo me mostrou que existem muitos termos e cenários que minha curta vivência pode não ter contemplado. Tive em mente enquanto escrevia o texto ser sensível a experiências diversas, mas caso tenha cometido algum erro, estou, é claro, aberta a apontamentos.

Em notas mais práticas, ainda não decidi 100% se vou ou não congelar os óvulos, mas quero fazer a cirurgia da endometriose o quanto antes. Estou tomando (mais) umas vitaminas que foram prescritas pelo médico e tenho umas duas semanas para decidir. Se alguém tiver alguma dúvida, conselho ou estiver passando pela mesma coisa e quiser conversar, pode responder este e-mail, deixar um comentário ou me escrever pelo meu formulário anônimo.

Até semana que vem e bom domingo 👋