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#06: Pensando demais sobre roupas

Este texto foi publicado originalmente na minha newsletter no Substack, que mantive ativa durante seis meses em 2022.

Bom dia 🌞🌞 Depois de uma semana agitada no debate público, não poderia deixar de trazer para vocês uma pensata sobre um assunto de extrema importância: a roupa que eu usei na quarta-feira.

Tudo começou quando estava desbravando meu armário à procura de um look que fosse ao mesmo tempo confortável para passar a tarde inteira na casa da minha mãe e bonitinho para um encontro com amigos à noite. Optei pela jardineira jeans e, na busca pela parte de baixo ideal, acabei desenterrando uma blusa branca de renda (foto abaixo) que eu não usava há uns cinco anos. Ela automaticamente chamou na minha memória a imagem da Alexa Chung porque eu havia comprado essa peça em 2012 por achar que a Alexa Chung teria comprado também. Tentei combiná-la como achei que a Alexa combinaria, mas todo o visual, dez anos depois, pareceu meio errado no meu corpo. Quando estava prestes a sair de casa resolvi trocar de roupa e a blusa voltou para o fundo da gaveta.

Contextualizando

Desde que me deparei com esta foto, por volta de 2009, concluí aliviada que nunca mais precisaria pensar sobre encontrar um estilo. O meu estilo seria para sempre tentar ser a Alexa Chung. Minha tática era salvar todas as fotos que eu conseguia encontrar dela em uma pasta e depois alimentar uma lista com os itens que mais apareciam: shorts jeans de cintura alta, camisetas listradas, camisas fechadas e blusas sem nenhum decote, jardineiras, bolsa carteiro, jaqueta de couro, meia-calça preta, vestido florido, suéteres diversos, comprimentos míni, casacos azul marinho, batom vermelho e uma versão acessível deste sapato (talvez a única peça de luxo que ainda mexa comigo de verdade).

Eu ainda amo essa jardineira jeans que comprei para tentar emular todas as 250 que a Alexa tem.

Por anos, eu me detive à ideia de que ela era a pessoa que melhor se vestia no mundo e sempre que precisava comprar algo novo eu pensava a Alexa Chung usaria isso?”. Às vezes, eu aderia a uma ou outra tendência por curiosidade, mas rapidamente voltava ao meu porto seguro. Quando algum elemento não me agradava em um look dela, eu logo concluia que era porque ela estava à minha frente, eu é que ainda não tinha entendido a proposta, mas em alguns meses estaria abraçando aquilo.

Ter começado a trabalhar em uma revista de moda em 2014 com certeza ampliou meus horizontes, mas em alguns momentos me fez ficar ainda mais presa às fórmulas que eu havia absorvido ao consumir quilos de fotos de uma pessoa só. Não é à toa que quem trabalha com moda tenha o costume de usar bastante preto e também algum tipo de uniforme. Existe um excesso de estímulo e você precisa se segurar em algum lugar — e também a questão de você começar a sonhar com coisas superornamentadas e as versões possíveis para o seu orçamento não serem lá muito bem feitas, então você acaba ficando nos básicos mesmo.

Quando contei para o meu namorado pela primeira vez sobre essa dependência que eu tinha no estilo da Alexa, ele me respondeu com muitas dúvidas, e uma delas era que ele não achava que ela se vestia tão bem assim, que ela parecia ser uma pessoa normal e ele queria entender por que ela, dentre tantas personalidades mais interessantes, representava tudo aquilo pra mim?

Fiquei tentando pensar se realmente existia ali alguma coisa além de um fascínio pelas roupas e pelo estereótipo do estilo britânico/francês. Lembrei que quando era criança vivi algo parecido com a personagem Silvana, da novela mexicana Cúmplices de um Resgate, que me influenciou a usar apenas combinações monocromáticas por alguns meses. Acho que tanto a Silvana como a Alexa representaram para mim uma forma de me diferenciar e ao mesmo tempo pertencer a algo que só eu entendia. Uma experiência que ainda não tenho totalmente clara na minha cabeça, mas desconfio que fale sobre eu nunca ter me sentido muito parte de nada na escola — a escola, esse lugar que continua ressoando dentro de nós por décadas, muitas vezes sem nos darmos conta.

Eu nunca sofri bullying

1, mas vivia achando que estava a um passo de começar a sofrer por ser introvertida e, principalmente, por ser asiática. Ao longo do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, me aproximei de grupos populares” diversas vezes, mas alguma pseudobrincadeira ou comentário sempre me trazia de volta à realidade de que eu era meio diferente e tentar me encaixar passou a ser um esforço muito grande. Eu sabia que por mais que eu tentasse ressaltar meus traços ocidentais na busca eterna de ser considerada bonita, eu nunca seria vista apenas como uma garota bonita, no máximo como uma garota japonesa bonita. Alguma versão com menos budget da Daniele Suzuki ou da Sabrina Sato.

Até um pouco antes disso, da primeira à quarta-série, me lembro de só me sentir tranquila graças à existência de mais uma aluna japonesa na minha sala porque as pessoas não podiam se referir a nós apenas por sermos japonesas porque, afinal, tinham duas de nós. Quando um garoto mestiço entrou na terceira série e todas as meninas começaram e gostar dele, eu fiquei extremamente feliz não apenas porque eu também gostava dele mas porque uma pessoa parecida” comigo era de alguma forma o padrão.

Hoje, olhando para trás, vejo que ter começado a gostar de moda e me vestir de uma forma considerada estranha pelos meus colegas foi bem mais sobre tentar encontrar algo genuinamente meu, algo que não tivesse nenhuma relação com o que costumava ser colocado sobre mim por ter traços japoneses, do que um amor incondicional pelos estilistas e pelos desfiles. Era algo que as pessoas não entendiam direito e, portanto, suas opiniões podiam deixar de importar para mim

2.

Ter encontrado a Alexa Chung foi um marco porque ela reunia tudo o que eu queria ser: era asiática, mas esse nunca foi o foco do discurso sobre ela. Ela namorava o Alex Turner e eu ainda acho que não existe nada que te faça sentir mais pertencente a um grupo do que a música que você ouve, então eu, por causa dela, me sentia parte do grupo de pessoas que ouviam indie mesmo sem nenhuma das minhas amigas ouvir. As roupas, por sua vez, tinham alguns elementos ousados ou vintage que faziam as pessoas ao meu redor ficarem intrigadas, mas não de forma exagerada porque eu não tinha a coragem de investir em algo que de fato pudesse me fazer sofrer bullying. Era um visual fácil de ser copiado e eu me sentia intelectualmente elevada ao usar ele, uma característica que parecia possível de ser alcançada se eu estudasse bastante, diferentemente da beleza padrão, que mesmo se eu me esforçasse não alcançaria nunca.

Uma estética” para chamar de minha

Na minha cabeça, isso tudo se relaciona com este vídeo que assisti há algumas semanas, em que a autora tenta explicar um fenômeno do TikTok, Tumblr, Pinterest etc, de garotas que querem ser vistas como manipuladoras, perigosas e descontroladas ao mesmo tempo que abraçam um visual delicado, vintage e meio decadente.

Para mim, todas essas estéticas” (insiraaquioquequiser_core) são reflexos de experiências que começam na escola. Muitas delas são criadas e adotadas por garotas que, por não se sentirem adequadas (na maioria das vezes por sofrerem preconceito, bullying ou racismo, na verdade), acabam encontrando uma saída ao se agarrar em algo que pareça genuinamente delas e que elas possam alçar a um patamar que outras pessoas não alcançam, o que esperançosamente tornaria irrelevante a ideia de alguém desdenhar daquilo (ou delas). Normalmente, elas buscam se diferenciar dos outros pelo intelecto ou por gostarem de algo que ninguém ao seu redor conhece ou se importa (para o meu eu adolescente era a moda e a Alexa Chung).

Tornou-se muito comum garotas online expressarem suas identidades por meio de uma lista artisticamente curada das coisas que elas consomem ou aspiram consumir — e porque jovens mulheres são condicionadas a acreditar que suas identidades são definidas quase inteiramente por suas neuroses, essas listas culturais muitas vezes servem implicitamente para sinalizar ao público as doenças mentais de uma pessoa. Uma garota no seu feed do TikTok pode se identificar como uma garota joan didion/eve babitz/marlboro reds/sight-cut levis/fleabag” (e isso significa que ela tem depressão). Outra vai chamar a si mesma de garota vestido babydoll/sylvia plath/red scare/miu miu/lana del rey” (distúrbio alimentar). Ou garota suco verde/claw clip/emma chamberlain/yoga mat/podcast” (distúrbio alimentar diferente do anterior). A estética do consumo tornou-se um canal para tornar o eu mais facilmente consumível: sua existência como um tipo de garota” não tem quase nada a ver com realmente ler Joan Didion ou usar Miu Miu, mas tudo a ver com você querer ser vista como o tipo de pessoa que o faria”, escreve Rayne Fisher-Quann, autora da newsletter Internet Princess, neste texto. Isso tudo é triste demais porque muitas dessas garotas que eu citei antes estão mesmo quebradas por dentro, mas seus gritos de socorro estão sendo cooptados pelo mercado de formas cada vez mais sorrateiras. Não que isso não acontecesse antes, mas as redes sociais não cansam de piorar o que já era ruim.

High school never ends?

Semana passada eu estava dobrando roupa e de repente lembrei de uma música da banda Bowling For Soup chamada High School Never Ends”. Eu descobri que tem um monte de espaço do meu cérebro ocupado pelas letras deles porque ela veio inteira na minha cabeça de uma vez só. Em algum momento do Ensino Médio, eu me interessei por pop punk e fiquei viciada nessa banda que é meio engraçada porque todas as letras giram em torno de fazer piada com atores de Hollywood e seus personagens por eles serem uma eterna reafirmação dos papéis da escola nas nossas vidas. Mas também era um pouco preocupante porque eles deixavam implícito que mesmo depois de crescer era meio impossível fugir disso.

Eu costumava concordar, mas acho que eu ter me sentido estranha com a minha blusa branca de renda foi um indício de que talvez eu tenha superado a Alexa Chung. Eu ainda acho que ela se veste muito bem e fico aliviada de lembrar dela quando me vejo considerando comprar um vestido colado de estampa psicodélica da Poster Girl. Porém, ela representa uma fase de insegurança e não pertencimento na minha vida que ainda está presente, claro, mas que não é mais tão forte hoje. Às vezes, reconhecer isso dá medo e tenho vontade de agarrar de volta essa sensação por mais contraditório que isso possa parecer. É como se esse sentimento de inadequação fizesse eu ser quem eu sou mesmo tendo me feito sofrer, o que volta ao vídeo e ao texto da Rayne Fisher sobre encontrar conforto na performance do desconforto/sofrimento”.

Ter um ícone de estilo nesse nível foi útil como um guia quando eu estava crescendo, mas com certeza fez com que eu deixasse de experimentar muitas coisas. Nos últimos anos, eu me permiti ter outras inspirações

3, mas é curioso que todas as vezes em que não me vi pertencente a um novo grupo, ou me senti mal em alguma nova experiência, eu recorri ao visual Alexa Chung e tudo o que ele representava para mim apoiada na desculpa de não estar me sentindo eu mesma naquele momento. Na maioria das vezes, provavelmente, era apenas medo de lidar com mudanças.

Pensar demais em itens que me representam tem ficado cada dia menos importante também, e, nesse contexto, tenho achado meio desconfortável observar o quanto de esforço é colocado por parte de quem cria conteúdo em tentar definir pessoas e gerações pelo que elas consomem — digo isso sendo eu uma jornalista que vive de ficar fazendo tese a partir de observações do comportamento humano. Não quero dizer que é porque estou chegando aos 30, mas parece que finalmente o Ensino Médio acabou e eu posso admitir para mim mesma que nada disso importa de verdade. Pensei em me desfazer da blusa branca como um simbolismo do meu desapego, mas a verdade é que a Alexa Chung sempre vai fazer parte de mim, eu só precisava entender o motivo que estava me prendendo a ela para poder seguir em frente. Nada melhor do que escrever 12 mil caracteres sobre toda a minha vida para isso. 🤓


Eu pediria para você terminar esta newsletter ouvindo uma música do Arctic Monkeys para entrar no clima, mas como não quero fazer você fazer isso, vou indicar esta do Fleetwood Mac que começou a tocar na quarta-feira no Riviera enquanto eu bebia com amigos e inevitavelmente me sentia parte de um episódio de satc. Ela foi definida perfeitamente pelos comentários de duas pessoas no YouTube: How can one band have so many masterpieces that render such feelings?!!!” e This makes me wanna put flowers in my hair and embrace my existence.”

É isso por hoje! Será que alguma dessas coisas fez sentido? Fazia tempo que eu estava ensaiando um texto sobre o que ser obcecada pela Alexa Chung significou na minha adolescência. Não sei se hoje foi o melhor dia para isso, mas tudo bem também. Escrever sobre esse assunto acabou abrindo diversas outras dúvidas na minha cabeça, tipo o que é ter estilo próprio atualmente, o que significa ser eu mesma, por que temos tanto medo de ficar irrelevantes, será que pensar nisso já me torna irrelevante?? 🫥

Não sei, mas até semana que vem e bom domingo!

Nathalia


  1. Outro dia uma pessoa me contou que não achava que sofreu bullying na escola porque queria muito se sentir enturmada e, por isso, dizia que não ligava para as coisas que aconteciam com ela naquele ambiente, mas hoje ela percebe que era bullying mesmo e que isso afetou demais a autoestima dela. Pode ser que eu tenha vivido algo do tipo e não queira admitir.↩︎

  2. Na oitava série, cada pessoa precisava escolher fazer um trabalho sobre alguma coisa que lhes interessasse, poderia ser uma pessoa, uma lembrança de família, uma comida que gostasse e eu escolhi moda. O assunto inteiro. Enquanto alguns alunos contavam sobre o apego emocional que possuíam por um objeto, eu decidi fazer uma enciclopédia da moda a fim de conseguir me associar àquele assunto na cabeça das pessoas.↩︎

  3. Como os vestidos balão estilo Simone Rocha e Molly Goddard que fugiam da silhueta clássica da Alexa. Curiosamente, porém, agora ela vive aparecendo com roupas dessas estilistas.↩︎