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#01: Disciplina

Este texto foi publicado originalmente na minha newsletter no Substack, que mantive ativa durante seis meses em 2022.

Olá! Bom dia! Obrigada por estar aqui para a minha primeira newsletter oficial. Estou me sentindo muito querida por saber que tantas pessoas têm interesse em ler o que eu escrevo. É um pouco amedrontador, mas com certeza empolgante. Sentir essas coisas me faz ter certeza de que estou viva e, por isso, obrigada de novo!

Gostaria de começar compartilhando notícias melhores sobre a minha vida pra quem não ouve falar de mim há algum tempo, mas a grande novidade é que peguei Covid pela primeira vez na semana passada. Eu estava vindo de uma sequência de eventos noturnos abarrotados e sabia que aconteceria a qualquer momento. Ironicamente, acabei pegando da minha mãe em um dia calmo, ensolarado, só eu e ela.

Quando o teste deu positivo, fiquei completamente frustrada. Foi impossível não ficar dando replay mental em mim coçando o olho por baixo do óculos como se eu realmente soubesse que aquele foi o momento exato em que deixei o coronavírus entrar. Um sentimento idiota para alguém que, convenhamos, já havia aceitado o resultado quando topou ir em diversos aniversários1. Um sentimento idiota porque frustração, naquele momento, era achar que de alguma forma eu conseguiria passar imune por uma pandemia mundial ao ser recompensada pelo trabalho duro de ter me cuidado um pouco mais do que o resto das pessoas. Um prêmio por ser uma pessoa dedicada e competente. Escrever isso agora me deixa frustrada de novo, mas por perceber que mesmo em uma situação como essa, meu cérebro continua repetindo os padrões que me fizeram precisar deste período sabático em que me encontro. E eles são vários, muitos, cada hora descubro um novo. Mas um que vem me intrigando recentemente é a percepção de que sou disciplinada demais (e bastante dura comigo mesma quando as coisas saem do controle) e que, na minha vida, há pouco espaço para espontaneidade.

No segundo ou terceiro dia de isolamento, acabei lembrando de um episódio aleatório da minha infância: o dia em que a minha professora da quarta série me deu uma bronca por achar que eu estava reclamando do Ótimo que recebi em matemática no boletim2, quando, na verdade, eu estava celebrando. Eu tinha certeza que naquele semestre eu tiraria no máximo um Razoável e fui comentar com ela sobre a nota. Mas, antes de me deixar completar a frase, ela acabou me dando um sermão sobre como eu precisava aprender que nem sempre vamos tirar Excelentes na vida e que eu deveria ser menos rígida e apenas aceitar as coisas em vez de questionar tudo. Acho que foi um bom discurso, mas ele fez eu me sentir péssima por muito tempo. Fiquei pensando o quão chata eu era na escola, principalmente para os outros alunos, a ponto da professora querer me falar aquilo. Consigo sentir o constrangimento até hoje de estar indo com a intenção de mostrar que eu poderia ser diferente e receber um balde de verdades inesperadas na cabeça. Foi uma sensação mais ou menos parecida com levantar o braço para acenar para uma pessoa e ver que ela estava dando oi para alguém atrás de você.

Eu ando pensando muito sobre isso de ser rígida demais depois que descobri que tenho endometriose — a doença misteriosa, mas comum, sobre a qual a Anitta escreveu no Twitter. Tive a sorte de descobrir logo porque fui em uma ginecologista atenciosa que me pediu uma ressonância magnética em um bom laboratório. Mas, por não fazer sentido na minha cabeça que a única opção de tratamento fosse pílula anticoncepcional (que eu escolhi parar de tomar há quase dez anos), pesquisei muito nos últimos meses sobre o assunto até chegar ao consultório de uma médica especialista na doença. Ela me deu uma aula sobre endometriose, que eu gostaria de escrever sobre em outra oportunidade, mas o foco aqui é que ela me disse que essa é uma doença frequente em pessoas que são rígidas demais consigo mesmas. É claro que existem casos e casos, e não dá para culpar a vítima por ter endometriose, mas é óbvio que eu me culpei ao saber do diagnóstico. Fiquei pensando nos anos em que negligenciei meu corpo em prol do trabalho e cheguei a ter certeza de que desenvolvi isso entre 2015 e 2016, quando eu basicamente pulava refeições para conseguir entregar mais do que me era pedido no trabalho, na faculdade e em qualquer outro lugar com regras e metas a serem cumpridas. Mas aí me lembrei dessa história da quarta série e percebi que a coisa é mais embaixo. Tão profunda que, apesar de me culpar e ficar extremamente aterrorizada com a possibilidade de ter que fazer uma cirurgia, o diagnóstico me deu um pouco de orgulho. Afinal, ele era uma comprovação científica de que eu sou mesmo uma pessoa disciplinada 🤦‍♀️.

Na última semana, quando meu corpo me impediu de seguir a rotina que eu criei para corromper meu período sabático, em alguns momentos me vi livre. Comecei e terminei uma série de comédia (Hacks) em dois dias — vale dizer que o mais perto que cheguei de me permitir maratonar uma série em muito tempo havia sido reassistir a primeira temporada de Skins, em fevereiro, como uma rebeldia consciente3. Não lavei a louça, deixei uma mala de viagem virar decoração no meio da sala, não estudei programação na segunda, costura na terça e roteiro na quarta (parte da minha rotina inventada) e não abri meu e-mail. Mas bebi água quando tive sede, o que excedeu a minha meta diária espontaneamente (!!), assisti dois filmes, li quando deu vontade, conversei conversas com meu namorado, e dormi, dormi muito.

Um dos highlights da minha semana de Covid foi ter me mimado com um macaron de formato duvidoso.

Eu acho muito curioso, triste e sintomático quando vejo mulheres falando que secretamente desejam ficar doentes para poderem descansar. Imagino que, a essa altura, todo mundo já pensou nisso em algum momento da vida, mas continuo vendo essa piada” vindo de mulheres com mais frequência. Tipo neste vídeo, que na época achei desproporcionalmente engraçado e genial, no texto da Carol Pires na newsletter Folga (“pensei que se o exame confirmasse que eu tinha tido um pequeno aneurisma (o que explicaria metade do meu rosto paralisado), eu poderia pelo menos ter uma desculpa para descansar por alguns dias”), nos stories da minha ex-chefe, que coincidentemente pegou Covid na mesma semana que eu, em que ela dizia que estava tendo tempo pela primeira vez para fazer as coisas com calma e curtir músicas, filmes e séries.

Por mais que eu tenha moldado meu 2022 para não ter mais esse tipo de pensamento, percebi que só me senti realmente livre quando meu corpo fisicamente impediu a minha cabeça de ficar calculando coisas como quanto tempo de sabático eu ainda tenho, como aproveitar cada segundo dele para me aprimorar como ser humano, como fazer jus ao privilégio de estar tendo este ano ou como me preparar para quando ele acabar”. Todas as vezes que algo do tipo passou pela minha mente na semana passada, o resto do meu corpo tratou de calá-la dizendo: oi, estamos um pouco ocupados agora tentando nos salvar de uma doença respiratória para engajar nisso, tá?”.

Ser extremamente disciplinada é uma virtude para o capitalismo e eu a alimentei por tempo demais ao descobrir que tinha facilidade de bloquear os meus desejos, fosse ao voluntariamente perder fins de semana trabalhando, fosse me envergonhando das minhas conquistas. Eu continuo sofrendo quando percebo que vou chegar dois minutos atrasada em compromissos com pessoas que sempre me deixam esperando ou quando não tenho tempo de arrumar meu Notion, Todoist e outros aplicativos que uso num nível obsessivo pra dar ainda mais limite pra minha vida. Eu não quero largar completamente a disciplina, é claro, ela me ajuda a realizar coisas, como esta newsletter, mas comecei a ler How to Do Nothing, da Jenny Odell, e abandonei porque não estava com vontade de ler esses dias e já me sinto um pouco menos disciplinada. É um bom sentimento.

Acho que é isso por hoje. Nos vemos domingo que vem!

Nathalia

Bom, para não deixar vocês apenas com um blocão de texto, segue abaixo um minúsculo review das três peças de cultura que consumi na última semana.

  • Hacks: O encontro agradável entre O Diabo Veste Prada, Mulan e a série Love. Se você gosta de qualquer um dos três, recomendo!

  • The Worst Person in The World (A Pior Pessoa do Mundo): Chorei no fim, mas no meu balanço final, foi só mais um filme.

  • Everything Everywhere All at Once (Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo): Esperava outra coisa (100% culpa minha). Dito isso, fui tocada pela cena das pedras falantes e achei a produção realmente demais, ainda mais quando descobri que eles fizeram tudo em pouquíssimas pessoas.

Você assistiu algum deles? Se estiver no clima de conversar, você pode responder este e-mail ou deixar um comentário clicando no botão ali em cima.


  1. Topei porque uma das minhas resoluções de 2022 é me fazer mais presente na vida de amigos, mas também por sentir que, atualmente (e infelizmente), falar de medo de Covid é apenas lido como uma desculpa ruim para não quero ver alguém, que confesso ter usado algumas vezes nos últimos dois anos, mas que não queria carregar comigo neste momento.↩︎

  2. Na minha escola, as notas eram separadas por Fraco, Razoável, Bom, Ótimo e Excelente.↩︎

  3. Eu queria engatar na coisa mais inútil que eu encontrasse para me provar que eu estava mesmo em um ano sabático e poderia fazer qualquer coisa que desse na telha, até passar um dia de sol inteiro deitada na cama de janela fechada assistindo uma série que eu já vi duas vezes e que atualmente não tem nenhum apelo na minha vida.↩︎